terça-feira, 31 de janeiro de 2012

Sobre Amor, Família e Morte

Não posso dizer que tive uma criação comum. Na verdade, não posso afirmar o contrário também. De qualquer forma, meus conceitos de amor são muito afastados do idealismo que vejo sendo pregado por aí, mas não sei se é porque as pessoas realmente acreditam nele dessa forma ou se é porque são fracas demais pra admitir que até mesmo o sentimento mais nobre é confuso e tem lá seu quinhão de egoísmo.

Isso se aplica à questão familiar. Eu não tenho apego aos meus parentes como a grande maioria das pessoas. Minha mãe perdeu a mãe dela antes mesmo de casar de um selvagem câncer de pulmão que a levou em questão de pouco tempo. Meu pai perdeu o pai quando tinha dezoito anos de um problema de estômago que eu nunca entendi bem, mas que também me leva a crer que foi câncer ou algo muito similar. Me restaram meu avô materno e minha avó paterna.

Durante minha infância, eu sempre fui passar as férias com o meu avô, sempre tive uma ligação com ele e até mesmo com a segunda esposa dele, a qual eu chamava de vovózinha e que SEMPRE me tratou como se eu fosse uma legítima neta dela. Eu também era muito ligada à minha madrinha e irmã da minha mãe. Na verdade, eu era ligada mais com meu padrinho, esposo dela, de quem tenho ótimas lembranças. Meus primos, filhos dele também nunca foram distantes, mas não posso dizer que tivemos aquela amizaaaade que muitos primos tem, até mesmo pela nossa diferença de idade. Quanto ao outro irmão da minha mãe - ela só tem esses dois - eu sempre gostei muito de ir passar um tempo com ele na fazenda onde ele morava. As duas filhas dele eram mais próximas da minha idade, então era mais fácil tê-las por perto. Ainda assim, minha ligação com minha família materna sempre se resumiu a isso. Nunca foi nada intenso demais, exceto talvez pelo meu avô e meu padrinho.

Ironia do destino, foram exatamente eles dois quem eu perdi.

Eu não me lembro bem quando foi, se foi em 2000 ou pouco antes disso. Só sei que ambos faleceram num período muito próximo ao outro. Eu ainda era nova demais pra poder entender a morte na sua amplitude, mas ao perdê-los, boa parte do pouco vínculo que eu tinha com a família da minha mãe também foi perdido. Minha madrinha foi embora para os EUA tentar a sorte depois de ficar sem o pai e sem o marido. E eu deixei de ir à minha cidade natal e consequentemente, deixei de ver meu tio. Goianésia não tinha muito sentido sem meu avô lá.

Meu pai nunca foi ligado à família. Ele é filho bastado, como eu gosto de chamá-lo quando estou com raiva hahahaha. Minha avó já era casada e meu avô também quando ambos decidiram deixar seus respectivos cônjuges e morar juntos. Isso em 1950, ou menos. Realizem bem o quão pródiga a senhora minha avó sempre foi. Não tô roubando nada, gente. Só herdei mesmo.

Quando meu avô morreu, papai e vovó vieram pra Goiás - são mineiros - e construíram suas vidas aqui. Meu pai sempre trabalhou pra caralho e eu sempre reconheci isso nele. Muitos que leem o blog sabe que nós dois não nos damos muito bem, mas isso nunca me cegou para as qualidades dele e uma delas é essa. Como ele não foi criado com os meio-irmãos mais velhos, acabou não criando por eles muito afeto. Sinto nele também um certo ressentimento, velhas mágoas de infância, mas ele é fechado demais pra expor-se assim. Construindo sua vida longe, ele aprendeu a transformar em família as pessoas que o ajudaram. Nunca conheci seus irmãos e parente por parte de pai e ele ficou trinta anos sem ir vê-los até um primo dele arrastá-lo pra Tiros-MG - sua terra natal - há uns anos atrás.

Minha avó sempre acompanhou meu pai. Desde a morte do meu avô, ela nunca teve uma vida dela. Viveu pelo meu pai, acompanhou-o em tudo o que ele quis tentar, apoiou, defendeu, brigou. Quando meu pai se casou com a minha mãe, ela veio junto. Sortuda. Nunca no mundo alguém poderá alegar ter uma nora tão boa como a minha mãe. Considerando o marido, a sogra e os filhos que ela tem, às vezes eu brinco com ela dizendo que ela foi Hitler encarnação passada pra poder estar pagando tantos pecados nessa.

Meu irmão e eu aprendemos com meu pai e com a minha mãe que sangue não faz diferença nenhuma no quesito amor. Eu tenho orgulho em dizer que tenho "famílias" pelo Brasil inteiro. Pessoas que eu amo como se fossem do meu sangue e das quais eu sinto a recíproca. Tenho tantos irmãos quanto gostaria de ter e muitos de seus pais me tratam como se eu fosse uma parte deles também. Nesse momento eu lembro principalmente de tia Sussu Miranda, Mirandão e Marina - mãe, pai e irmã, respectivamente, do Lucas/Cebola - aos quais eu nomeio carinhosamente de minha família sumareense. (Se algum deles ler isso, saibam que eu amo vocês e agradeço muito por sempre me fazerem me sentir em casa quando estou aí. Vocês são importantíssimos pra mim.)

Não sou ligada a parentes, meu amor é ligado a coisas superiores ao sangue, é ligado à recíproca, ao companheirismo, à amizade e a alguma coisa divina que jamais vou entender, mas é aquela mágica que te faz amar uma pessoa simplesmente por amar mesmo. Mas sou ligada à minha FAMÍLIA. E quando digo família, digo meu pai, minha mãe, meu irmão, minha avó e meus cachorros. Sempre brinco que aqui em casa de cercar vira hospício e se jogar uma lona por cima, vira circo.

Não somos convencionais, as pessoas aqui andam peladas, gritamos uns com os outros, rogamos pragas, desejamos que o outro morra, xingamos, vamos às vias de fato. Não vou ser hipócrita e negar nada disso. Mas nós nos amamos. Amamos de um jeito esquisito, mas amamos por opção. Não somos lá um poço de carinho, não somos muito bons em abraços e beijos, "eu te amo" aqui é motivo de piada, passamos pouco tempo uns com os outros, mas nos amamos mesmo assim. É o nosso jeito, um jeito meio calejado, meio arisco, mas de forma nenhuma menos real e intenso. Mexa comigo e eu posso ignorar. Mexa com a minha família e essa é a única forma de você conhecer um lado meu completamente irracional. Meu monstro interior está à minha disposição pra ir até ao inferno se alguém machucar quem eu amo, principalmente esses maravilhosos diabretes que compõem a hierarquia familiar dos Lima David.

Enfim, todos esses rodeios foram para chegar no ponto crítico da questão. Não há ninguém machucando minha família, só o tempo. E infelizmente, ainda não descobri como brigar com ele. Minha única avó viva, essa que sempre morou conosco, essa que sempre foi uma parte do nosso quinteto, essa senhorinha bontinha e terrível, está com noventa anos e a idade decidiu pegá-la de uma vez só. Minha avó está muito doente. Ela já ficou assim antes, mas nunca antes eu senti com tanta força que iria perdê-la. Nós duas brigamos como o cão, são raras as vezes que a gente conversa que ela não me faz gritar. Ela me deixa louca, é teimosa feito uma mula, ignora tudo o que a gente fala, insiste em tudo o que a gente quer deixar pra lá, mexe nas coisas que não deve, se intromete em conversas e tem uma resposta pronta pra tudo. Qualquer vizinho pode testemunhar os escândalos que apronto quando ela tira o dia pra me enlouquecer. Mas eu amo mesmo assim, ela sou eu no futuro.

Minha vó é feita de pedra, inclusive o coração. Fez o que quis e em tempos onde a imagem valia ainda mais que hoje, principalmente a da instituição familiar. Deixou um casamento que não queria pra ficar com quem amava. Mandou o mundo às favas e aguentou sozinha as represálias sociais. Fibra, coragem, determinação e principalmente, amor próprio. Eu às vezes uso isso pra julgá-la mal, mas é camuflagem. Eu a admiro profundamente por isso. Sério, na época em que ela vivia e ela ter coragem de largar tudo pra ir ficar com meu avô? Minha heroína. Não suporto passividade, omissão. Minha vó percebeu desde cedo que a vida muito provavelmente é uma só e que ela iria viver do jeito dela.

E mesmo assim, há dentro dela um instinto maternal feroz. Mas não pensem que é por todos os filhos. Ela tem um filho mais velho, do primeiro casamento - até hoje eu a atormento perguntando como ela conseguiu só ter dois filhos em uma geração em que o mínimo eram seis - e nunca se preocupou com ele. Minha avó abomina a fraqueza e meu tio é um homem calmo, pacífico e extremamente parecido com o pai. Em compensação, viveu por conta do meu pai. Acompanhou-o em tudo e em tudo lhe deu suporte. E olha, meu pai é tão bom pai quanto é bom filho. Grosso, estúpido, trata minha avó muito mal. Ela parece nem notar e eu juro que acho que ela realmente não nota. Parece que são justamente essas características que fazem com que ela o ame tanto. Ele não é um bosta. Ele é um ogro e na cabeça dela, homem que é homem tem que ser assim. Se ele fosse um filho respeitoso, do tipo que pede a bênção e fala baixo, provavelmente ela já tinha deixado ele rodado há muito tempo. Minha avó é uma delícia psicológica.

Quando digo tudo isso e penso na senhora debilitada que está deitada há alguns cômodos de mim, me dói profundamente. Minha avó sempre foi independente. Mesmo morando conosco a vida inteira, ela sempre teve a casinha dela à parte, nunca aceitou ajuda pra nada. E agora eu vejo o tempo judiando dela sem piedade. Vejo ela não conseguir mais segurar os intestinos, vejo ela não se lembrando mais das coisas, vejo ela perdendo a percepção, a noção espacial, o equilíbrio. E eu não sei o que fazer. Somos durões aqui, não somos do tipo que corremos e ficamos na cabeceira um do outro, até porque o doente iria mandar o acompanhante tomar no cu porque não temos paciência pra chororô.

É só que eu sinto que estou perdendo ela e não sei como lidar com isso. Uma morte simples e limpa seria fácil, mas não consigo vê-la morrer aos poucos, definhar, se tornar dependente. Isso é cruel demais pra alguém tão lúcida como ela. É como se o tempo risse da cara dela e ela ainda assim, continuasse a desafiá-lo. Eu não sei como pensar, eu não sei o que sentir. Todos tem que ir embora, mas eu preferia tê-la por mias uns bons anos me fazendo ficar louca a ter que deixá-la ir. Ao mesmo tempo, eu não ache que viver tanto tempo seja uma dádiva e sim um tormento. As pessoas que construíram sua história com você já se foram e agora só restam lembranças. Seu corpo está morrendo aos poucos. A morte pode ser um doce descanso. Eu só não sei pelo que orar, a não ser para pedir a Deus que seja misericordioso e escolha a opção mais justa e menos cruel.

Eu queria poder ir lá e dormir na casinha dela, mas isso não faz sentido pra mim. Tô pensando que talvez amanhã quando eu chegar do trabalho eu fique lá com ela conversando um pouco, mas também não sei se vou chegar a fazê-lo. Duas pessoas feitas de pedra não sabem se abraçar, não têm calor pra ceder. Mas ao mesmo tempo, eu me sinto horrível com essa sensação de que talvez esses sejam os últimos dias dela e eu não tenha feito nada pra que eles sejam melhores ou que pelo menos, eles deixem alguma boa lembrança. Me sinto inútil.

Eu estou despedaçada. Não quero admitir, não quero aceitar, mas estou. Eu não sei lidar com a morte, minha racionalidade me impede de sentir as coisas na intensidade devida. Eu apenas penso e penso e penso. E não há o que pensar sobre o fim. Ele simplesmente vem cedo ou tarde, pra tudo e pra todos. Não há nada que possam fazer por mim, não há nada que possam me dizer e o pior de tudo, não há nada que EU possa fazer. Mas ainda assim senti a necessidade de escrever tudo isso, talvez pra aliviar um pouco da angústia, talvez para me prevenir da culpa que irei sentir se minha avó realmente morrer e eu não ter feito nada.

Me resta a espera, me resta a esperança, me resta que minha mente se ilumine.

E nada disso me consola.

sábado, 14 de janeiro de 2012

Sobre Tédio

Você pensa "vou arrumar um trabalho legal e vou me sentir mais realizada". Daí você passa num concurso e fica na sua cidade com uma equipe que é uma família. Mas você ainda está incompleto. Então você pensa "vou comprar meu primeiro carro, com minha grana e isso é uma grande vitória". E você compra um carro legal e se sente bem com isso, mas o vazio permanece. Você pensa dessa vez "vou cuidar de mim e da minha saúde e vou conquistar um corpo bacana". Três meses depois seu manequim é seis números menor e a balança indica treze quilos que foram embora. Mas olha só, que surpresa, nem mesmo servir de inspiração pras pessoas conseguiu te deixar plenamente satisfeita. Você arruma um namorado gato, fiel e que gosta de você. Pronto, agora eu tô completa... NÃO, NUM TÔ! Segui tudo o que a sociedade me falou e veja só... No fim estou tão vazia como quando comecei. E tenho ainda menos esperanças, porque consegui tudo o que queria e nada me completou. Ainda sou mais feliz isolada na leitura dos meus livros que vivendo minha própria vida. Então alguém me diz, o que me resta? Estou fadada a morrer de tédio?