quinta-feira, 19 de abril de 2012

Sobre Escolhas e Caráter


É sexta, naquele momento em que o dia transita entre a tarde e a noite. Ela acorda e depois de refletir um pouco, decide que vai viajar. Vai até uma cidade relativamente próxima para ver o irmão, que se mudou há uma semana. A desculpa é que vai levar dinheiro pra ele – o que não deixa de ser verdade – mas no fundo mesmo ela queria era ir rever os amigos que fez no lugar, tomar banho na cachoeira lá perto e sair um pouco da rotina. Caprichosa, não fica satisfeita em ir sozinha e depois de pequenas chantagens emocionais, convence um amigo a acompanhá-la. Tudo parece caminhar para um fim de semana divertido. Só que não.

Há alguns dias ela vem deixando o amigo dirigir seu carro pra que ele pegue o hábito e nessa noite, ela decide que ele vai levar o carro até a primeira cidade que fica no caminho que vão percorrer. Não há muito perigo, não é uma estrada muito movimentada, ele até que está dirigindo bem. Quando estão quase chegando, somou-se o momento errado ao excesso de confiança do amigo. Um carro vindo na direção contrária fez com que o rapaz jogasse o carro muito para a direita, onde havia uma moto passando. Não deu outra. O retrovisor direito bateu nos motoqueiros e foi arrancado, derrubando os dois violentamente. 

Eles param o carro mais à frente. Alguns minutos de pânico entre os dois, ela passando para o volante e dando o retorno para dar assistência àqueles que por sua culpa, agora estavam bastante machucados. Mais gente parou para ajudar – inclusive o carro que estava vindo na direção contrária. Nenhum dos dois quer admitir que foram os culpados e sempre que alguém pergunta, permanecem calados. Ou o carro seria preso por estar sendo dirigido por uma pessoa sem carteira de habilitação ou ela teria a carteira provisória cancelada se admitisse que era ela quem estava ao volante.

Ainda assim, permanecem lá. Ajudam a dar socorro aos dois motoqueiros, onde um estava em pé e consciente e outro, deitado e com problemas pra respirar. Alguém ligou para a SAMU. Enquanto isso, eles e algumas outras pessoas permanecem. Ela senta-se perto do senhor que continua deitado e firma seu rosto pra que ele evite mexer o pescoço para o caso de alguma eventual fratura. Aos poucos ele recupera a consciência e ela vai tentando fazê-lo se distrair e rir, mas está preocupada. O senhor pergunta constantemente onde ele está e o que aconteceu, mesmo que ele tenha acabado de receber essas respostas. O amigo está sério. Há aquela sensação de desespero para que o socorro chegue logo e a responsabilidade já não esteja apenas nas mãos deles. 

Finalmente, a ambulância chega e os dois senhores são removidos para a cidade próxima. O amigo leva a moto e ela o carro, afinal, nenhum dos dois motoqueiros estavam em condições de pilotar. Deixam a moto em um posto na entrada da cidade onde seria seguro e seguem de carro para o hospital. O garoto diz que sente necessidade de contar que foram eles. Ela diz que não é uma necessidade e sim uma obrigação. Há uma pequena discussão. Ele só se sente na obrigação de contar por ser evangélico e por ter percebido que os acidentados também eram. Ela fica irritada e o condena, dizendo que eles podiam ser dois traficantes, mas são igualmente humanos e filhos de Deus, que eles estavam errados e que era uma questão de caráter assumir o erro que cometeram. Afastam-se. 

Ele entra na sala onde o médico avalia os dois e sai acompanhado pelo senhor menos machucado. Ela então entra na sala e pergunta ao senhor que se feriu mais como ele está. Diante do médico e do enfermeiro, admite a culpa e diz que vai deixar o celular com o porteiro para que eles ligassem se precisassem de algo. O amigo admitiu para o outro a culpa. Transtornados, seguem viagem. Depois de tudo, a relação entre os dois também está estremecida. A viagem é permeada por diálogos curtos e o que seria um excelente fim de semana se torna apenas um momento que ambos querem muito que acabe logo.

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Sábado à tarde o telefone dela toca. É a enteada do senhor que pilotava a moto. O medo toma conta da garota. Por mais adulta que seja, às vezes seu coração é de menina e toda aquela ansiedade, medo e culpa a dominam. A início, ela nega conhecer o fato e diz que provavelmente passaram o telefone errado para eles. Minutos depois, deitada em sua cama, ela percebe que estava agindo como uma covarde, justamente a característica que ela mais condenava em um ser humano. Assustou-se e tentou fugir da culpa, mas lembrou-se de que tinha caráter o suficiente para ser perseguida por aquela noite o resto de sua vida. Respirou fundo e retornou a ligação, falando com a esposa do senhor, pedindo desculpas e se colocando à disposição para arcar com as despesas causadas e ajudar no que for preciso.

Domingo de manhã, ela vai até a casa dos dois senhores. Ela teria que arcar com a medicação e com o conserto da moto, mas não é isso que a perturba. É doloroso para ela olhar para os dois senhores machucados e pensar que a culpa é sua. E é mais doloroso ainda porque eles a tratam muito bem. Não há condenação em seus olhos, ao contrário, há compreensão. Ela leva uma amiga enfermeira para avaliar a situação e fica mais aliviada quando ela diz que a dor é normal, devido a pancada, mas que não é nada mais grave. Ainda assim, garante à família que se não melhorar no tempo recomendado pelo médico e pela amiga, providenciará o encaminhamento deles para sua cidade natal, onde pode oferecer melhor assistência médica. Deixa já o dinheiro do medicamento e um adiantamento pelo conserto da moto, que ainda não foi avaliada. Despede-se e segue seu caminho.

No decorrer do tempo, ela vai informando ao amigo sobre a situação. Ele quer dividir as despesas e a culpa, mas ela não deixa. No seu coração, ela sabe que a culpa é dela, pois foi assumiu os riscos no momento em que deixou o amigo dirigir. Ela causou aquilo, direta ou indiretamente. E ela vai resolver. O problema é que parece que aquela situação afastou os dois. Um elefante na sala.


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Na segunda-feira, ela liga pra ter notícias do orçamento da moto. A família é tão boa que fazem orçamento em três oficinas diferentes para avaliar o melhor preço. No fim do dia eles passam o menor valor e ela transfere o dinheiro na hora. Liga pra confirmar o recebimento e no dia seguinte, liga para confirmar o saque. Ainda se sente culpada. Por mais que forneça o suporte financeiro, não pode curar instantaneamente aqueles que ela machucou. Pergunta sobre a saúde dos senhores, como estão se saindo. Tenta manter o bom humor e promete ir visitá-los no próximo fim de semana e levar alguns medicamentos analgésicos.

À noite, ela tem pesadelos.

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É quinta-feira, ela está no trabalho e um número desconhecido liga. É um irmão dos senhores nos quais ela bateu. O coração dispara e ela pensa que finalmente vai ser repreendida pelo que fez. Mas é o contrário. Ele liga pra agradecer. Agradecer sua responsabilidade, agradecer o apoio e agradecer principalmente a preocupação. Dar o suporte financeiro era inevitável, mas se preocupar de verdade com a pessoa não é algo que ela devia fazer e assim, ele agradece. Ela chora. Pede desculpas pelo que aconteceu e finalmente desabafa o quanto se sentia culpada. Ele diz que quem está no trânsito está sujeito a acidentes e que o importante era que ela cumprira seu papel como cidadã, mas principalmente como cristã. E então ele encerra dizendo que vai orar por ela e por sua família.

Ela vai até o banheiro e chora ainda mais. Durante todo esse tempo, se ela tivesse sido repreendida, ao menos não se sentiria tão culpada. Mas a compreensão às vezes é mais dolorosa do que a acusação. Percebe que está tão acostumada a conviver com a estupidez e o rancor, que a compaixão e a piedade chegam a machucar. Promete a si mesma que nunca mais vai pensar me fugir quando a situação parecer grave. Enxuga as lágrimas com uma toalha chamada caráter e então vai para o seu blog e escreve este texto para lembrá-la sempre que até mesmo quando se erra, Deus nos dá a chance de fazer a coisa certa.

Bom fim de semana, gente =)
E que vocês também tenham a chance de, se não puder consertar seus erros, ao menos fazer o melhor que pode para compensá-los.

domingo, 1 de abril de 2012

Sobre Auto-Estima


Muitas pessoas se espantam com a minha capacidade de ser franca. Não só ser franca nas minhas opiniões sobre as outras pessoas, mas principalmente, ser franca sobre mim. Não sei bem a origem disso, tenho a impressão que começou quando eu tive minha primeira crise depressiva, aos catorze anos. Minha recusa em ir a analistas – afinal, eu tinha entrado em depressão por confiar demais nas pessoas e me decepcionar, então não estava pronta pra tentar resolver meu problema justamente tendo que confiar em um estranho – fez com que eu criasse meus próprios mecanismos de defesa. Um deles – o principal – foi a auto-análise. Por mais que eu enrole por um tempo, mais cedo ou mais tarde, eu sento comigo mesma em um café parisiense num dia frio e digo “vamos conversar”.

Com o tempo, aprendi a compartilhar essas minhas conversas. Quando mais eu falo de um problema, mais próxima eu fico de solucioná-lo. Além do mais, sinto que é algo que posso fazer pelas pessoas. Se elas não conseguem expressar seus conflitos internos, talvez através da identificação com os meus, elas também possam chegar a alguma solução.

Hoje eu estou aqui pra falar sobre problemas com a minha auto-estima.

Como eu já disse ali em cima, aos catorze anos passei pela minha primeira crise depressiva. Decepcionei-me com aqueles que eu julgava meus amigos e porra, eu era uma adolescente! Imaginem a dimensão que isso tomou na minha vida. Com isso, eu já tive um forte golpe no meu ego. Eu me achava super legal e à prova de rejeições. A pancada foi tão forte que eu simplesmente me isolei. Não reagi com a minha explosividade típica. Chorei, guardei, me ressenti. E depois de passar por várias fases similares às do luto – afinal, alguma coisa tinha realmente morrido em mim – eu decidi que não iria deixar que pessoas que me trataram mal me transformassem em um deles. Mas com isso, acabei me tornando auto-suficiente demais. Decidi que não precisava de ninguém na minha vida, que iria ser uma ótima pessoa com todos e uma ótima amiga a quem precisasse, mas que não confiaria em ninguém. Que eu seria uma boa amiga, mas que não iria querer ninguém como amigo.

Junto com esse problema psicológico, veio o fato de eu ter sido sempre gorda. Não estar dentro dos padrões estéticos criou outra barreira de auto-proteção. Eu me achava horrorosa e por justa causa, não acreditava que as pessoas pudessem ter outra visão que não essa. Nunca soube lidar com elogios físicos, pra mim soavam sempre falsos ou com segundas intenções. Inteligente, companheira, leal... Tudo bem. Bonita, sorriso cativante, olhos expressivos... Eu já entrava em estado de alerta, dava um sorrisinho amarelo e escapava.

Aos dezesseis eu fui aprovada para Direito na UFG, o segundo curso mais disputado na época. Isso elevou minha moral. Eu podia não ser bonita e podia não confiar nas pessoas, mas agora eu provava que era inteligente e capaz. Só que com o tempo eu percebi que aquilo não era nada do que eu queria e o  angu desandou de novo.

Por anos, me arrastei em um limbo. A única coisa que me mantinha em pé era um altruísmo destrutivo. Uma espécie de obrigação em fazer bem as pessoas na expectativa de que um dia eu encontrasse alguém disposto a fazer o mesmo por mim. Nesse meio-tempo, abandonei a faculdade por falta de afinidade com a área, vagueei entre ficar completamente à toa e trabalhos em órgãos públicos, me descuidei completamente de mim mesma e existi. Minha única conquista – o vestibular – a essa altura já não me valia de nada porque não concluí o curso, e eu era só mais uma garota de futuro brilhante que decepcionou a todos, inclusive a mim mesma.

Ano passado eu voltei pra casa. Fracassada, obesa e sem nenhuma perspectiva de vida. Não vou entrar em detalhes – porque já falei sobre isso em outros posts – mas em menos de um ano, dei uma reviravolta na minha vida. Comecei uma nova faculdade que eu gostava, passei em um concurso público federal para cargo efetivo, comprei meu carro, emagreci quinze quilos, fiz novos amigos, passei a ser menos racional e mais emocional, me entreguei mais aos meus relacionamentos – pessoais, amorosos, amizades, etc. E então eu fui de um extremo ao outro.

Deslumbrada, comecei a tentar aproveitar tudo o que eu não tinha aproveitado. Eu tinha conquistado tudo o que almejava com tanta facilidade! Passou a chover homem me elogiando, me cantando, flertando comigo. Passou a brotar gente querendo sair comigo, me chamando pra festas, fazendo questão da minha companhia. Passei a ser reconhecida no meu trabalho, me tornei útil. Entrei num país mágico que me parecia inacessível até pouco tempo antes, eu era considerada linda e querida. Tornei-me fútil, egocêntrica, descontrolada. Não dizia não a nenhuma balada, não dizia não a nenhuma pessoa. “O melhor momento da minha vida” eu disse várias vezes. E não, não era.

Depois de meses nessa vida, eu comecei a sentir um vazio imenso dentro de mim. E de repente me toquei que eu não tinha nenhuma perspectiva, nenhum objetivo. Tudo o que eu tinha desejado tinha acontecido e então eu parei, não fiz mais nenhum plano. Deixei a faculdade em segundo plano, não fiz nenhum projeto de vida e percebi que não conseguia me visualizar daqui a cinco anos. Na verdade, não consigo me visualizar daqui a um ano, sequer. Eu não sei quem eu sou, quem eu quero ser, onde eu quero chegar. Tornei-me uma casca vazia. Vivendo o dia de hoje sem pensar no amanhã. Uma pessoa sem sonhos, sem metas. Eu me tornei exatamente o tipo de pessoa que eu tinha prometido não me tornar lá atrás, quando tudo começou.

Confusa, passei essas últimas semanas refletindo sem encontrar uma solução. Até que falei com uma amiga, Marina Bonafé, essa noite. Por favor, não quero que nenhuma das minhas outras amigas sintam ciúmes aqui, mas abri o jogo com ela porque eu tinha certeza que de todas as pessoas com quem convivo, ela era a única que iria conseguir me entender. Não sei se é porque a gente é muito parecida, só sei que quando eu não consigo enxergar o que está acontecendo comigo, ela vê com uma facilidade assustadora.

Ela não falhou e deixou bem claro que a impressão que eu tinha dado a ela era a de que meu psicológico/emocional não acompanhou minhas mudanças físicas. Minha auto-estima, minha autoconfiança, meu amor próprio... Nada tinha acompanhado as mudanças externas na minha vida. Por fora, uma Gabriela bonita, bem vestida, confiante, bem sucedida, bem acompanhada... Por dentro, uma Gabriela insegura, desconfiada e francamente decepcionada com o rumo que estava dando à minha vida. Entrei em choque comigo mesma. Foi tudo tão rápido que eu não consegui administrar.

Posso dizer agora, com toda a sinceridade, que me olho no espelho e continuo me achando feia. Posso dizer agora que continuo me esforçando pelas pessoas, mas não acho que elas possam oferecer nada a mim. Posso dizer que continuo achando que pro meu potencial, eu sou um completo fracasso. E posso dizer que acho que estou errada. Que há um meio termo. Que não sou linda, mas também não sou horrorosa. Que o mundo está cheio de pessoas falsas mas que eu também tenho pessoas incríveis perto de mim. Que eu posso não ter chegado no máximo do meu potencial, mas que também não deixo a desejar.

Descobri que ainda não vivi nem o melhor, nem o pior momento da minha vida. Que nunca fui completamente feliz ou infeliz. E que talvez isso não exista, que os extremos não sirvam de nada.

É preciso achar o meio-termo.

Nesse momento, estou trabalhando pra definir minhas prioridades. Sem influências sociais e sem cobranças exageradas de mim mesma. E resolvi escrever esse texto pra que eu possa lê-lo se me perder de novo. Pra que as pessoas encontrem alguma coisa em comum comigo. Pra me lembrar de quais são meus valores. Lembrar-me que passei a me cuidar não pra ter um monte de homens me querendo, mas pra EU me querer mais. Lembrar-me que eu não devo estudar e trabalhar pra mostrar algo às pessoas, e sim pra me realizar, pra encontrar motivação pra preencher minha vida. Lembrar-me que estou rodeada de pessoas e que eu sou um delas. Que eu também erro, que eu também acerto e que no final, o que importa mesmo é quem vale a pena vai continuar ali pra mim, por pior que as coisas possam ter sido entre nós algum dia.

Parei de enxergar o “não sei” como motivo pra me desesperar e sim como uma nova chance de fazer novas escolhas. E desejo a todos que perderam seu norte, que encontrem um lugar onde não haja ondas magnéticas e que suas bússolas voltem a funcionar.

Ainda não sei a caminho de que estou. Mas gente, o importante é que eu voltei a andar. Quero aprender a dizer não e sim na hora certa e não ficar presa a apenas a uma dessas respostas.

E é isso o que eu tenho pra hoje.