domingo, 27 de maio de 2012

Sobre Cruzes na Estrada

Hoje eu falo de um túmulo no cemitério na saída da cidade. Hoje eu falo enquanto ainda posso, porque logo não terão sobrado ligamentos que permitam que meus dedos se movam e eu digite. Hoje eu falo de uma cruz na estrada, em uma curva quase exatamente na metade do caminho entre Crixás e Santa Terezinha. Há mais uma ou umas cruzes ao meu lado, não sei ver. Ou talvez eu esteja sozinha. De qualquer forma, hoje eu falo como alguém que morreu. Ou devia ter morrido.

Aos dezoito anos eu capotei um carro. Irresponsabilidade, dentro da cidade, correndo o dobro da velocidade permitida, todos sem cinto. Foi um susto e tanto. Mas esse era o tipo de acidente que poderia ter sido evitado não fosse aquela síndrome de Superman que eu tinha na época. Aos vinte e quatro anos, eu capotei outro carro. Ninguém no carro bebe. Não estávamos correndo. Três dos quatro integrantes de cinto, e o quarto só não estava por teimosia, porque foi avisado assim que saímos de Santa Terezinha (cidade a 33km de Crixás, onde moro). Era só um tamanduá bandeira gigante ocupando toda a pista da direita em uma curva fechada à uma da manhã.

Muitos vão achar que eu estou me justificando, mas o acidente na madrugada de sexta para sábado último, não foi um acidente qualquer. Não era aquele que você poderia evitar. Em uma velocidade média entre setenta e oitenta km/h, com a força centrífuga nos mantendo dentro da nossa pista para fazer a curva, nenhuma opção nos salvava. O tamanduá, enorme e pesado apareceu no nosso raio de visão segundos antes da possível colisão. A maioria das pessoas disse que teria passado por cima. Eu calculo que se tivéssemos batido sem freiar, provavelmente meu namorado e eu -  que estávamos na frente -  teríamos entrado dentro do motor, devido a velocidade e o peso do tamanduá. Pisando no freio e batendo, provavelmente teríamos capotado de frente, porque não dava tempo de reduzir a velocidade o suficiente. O instinto foi desviar. Não parecia que era grave, sabe? Um desvio, voltamos à pisa da direita e ok, vamos pra casa. Mas não. Não vamos pra casa agora porque o carro está sem controle e nós estamos voltando pra pista da esquerda. Eu já sabia o que ia acontecer. Eu não orei a Deus como fiz seis anos atrás pedindo pra impedir. Eu sabia, eu sabia que não havia volta. "Pai, protege-nos." foi tudo o que pensei antes do carro voltar a se jogar pra direita e eu ver os faróis iluminando o barranco tomado pelo capim alto.

Todos gritavam. Meu namorado e minha cunhada foram os primeiros a sair do carro. Em seguida, tiraram o Rodrigo (Japa), e quando meu namorado viu o sangue que jorrava na cabeça do amigo, desesperou-se. Eu estava presa pelo cinto, o carro de cabeça pra baixo e uma dor indescritível na minha coluna , do lado esquerdo, me atrapalhava respirar. Ao contrário da outra vez, eu não gritei. Eu não me desesperei. Eu sabia que as três pessoas comigo estavam vivas e conscientes. E sabia que estavam inteiras na medida do possível, porque conseguiram engatinhar pelos vidros traseiros e saírem do carro. Então, eu queria dormir. Eu queria ficar ali, presa pelo cinto, de cabeça pra baixo e dormir até que o socorro chegasse. Até que me anestesiassem de tal forma que eu só acordasse quando estivesse tudo bem. E então eu ouço meu namorado gritando, pedindo pra eu falar com ele. Todos gritavam, menos eu. Todos saíram do carro, menos eu. Por alguns segundos, eles puderam pensar que eu estava inconsciente ou morta. E então eu soltei o cinto e saí. Não por mim, mas porque eu sei exatamente qual é a sensação de pensar que alguém que agora a pouco estava conversando com você pode estar morto.

Mal saí do carro e já havia ajuda. Carros de amigos e conhecidos que saíram de Santa Terezinha pouco depois de nós. Fui deitada no banco traseiro de um dos carros e o Japa, que teve dois cortes enormes no couro cabeludo, foi no banco da frente com a camisa do meu namorado pra estancar o sangue. Éramos os mais feridos. Minha cunhada, ainda em recuperação de uma queda de moto, sentia dor na perna. Meu namorado só sentia desespero. Acalmei-o e disse que daquela vez, ele teria que assumir o controle e resolver a situação sem mim, porque eu não tinha condições de ficar. Dei algumas pequenas ordens, pessoas a quem ligar - minha amiga enfermeira pra que ela já me esperasse no hospital -, coisas a se fazer - sinalizar o local do acidente porque estávamos em uma curva e a situação poderia ser ainda pior se alguém viesse desavisado e então me permitir sentir minha dor. Em uma velocidade propícia para um acidente ainda pior, logo estávamos no hospital.

Medicados, Japa e eu fazíamos piada. Cantávamos o Tchu Tcha Tcha. Ele reclamava do cabelo dele. Eu reclamava da minha roupa. Tudo pra não se deixar enlouquecer, tudo pra não pensar que talvez pudéssemos nunca mais ouvir a voz um do outro. A dor diminuiu até se tornar suportável, mas ainda estava lá. Minha cunhada chegou em seguida. Minha amiga enfermeira ligou pros meus pais. Devagar, as coisas iam entrando em ordem. Meu pai foi pro local do acidente e apesar do jeito que ele me olha hoje, eu não me esqueço d'ele dizendo ao telefone pra minha mãe "Não sei o que fazer com a Gabriela. Cada acidente é pior que o anterior. Da próxima vez, vamos ter que recolher os pedaços dela no asfalto." Desculpa mãe. Desculpa pai.

Finalmente meu namorado chegou. A perna doía, mas era só. Vê-lo ali, inteiro, me desmontou. Ok, não preciso mais ser forte, estamos todos vivos, estamos todos bem. Finalmente chorei, senti raiva, culpei quem não tinha culpa. E então ele me acalmou e tudo o que eu queria era que ele ficasse comigo. Mas a SAMU havia chegado e mãe é mãe. Por mais que eu quisesse o Daniel comigo, era ela quem devia ir tomar conta da filha moribunda. O Japa já tinha sido encaminhado de ambulância para Ceres - centro médico mais próximo - e eu ia de SAMU por possíveis estragos na coluna.

Numa sucessão de dormir, acordar, ser trocada de lugar, tomar agulhadas e sentir dor, era de manhã e eu não tinha nada grave. O Japa também não. Podíamos voltar pra Crixás, lamber as feridas, recolher os cacos e recomeçar. Quando fui tomar um banho, tomei noção da proporção dos machucados que eu havia negligenciado pela dor na coluna - agora bem leve. Dois buracos, um no punho e outro no joelho direito. A carne amassada, suja, estragada. A pancada na cabeça que eu não sentira por causa do anestésico. O lado esquerdo do rosto inchado e roxo pelo murro invisível. O cabelo arrebentado caindo aos montes dando a impressão de que eu iria ficar careca de um dos lados da cabeça. E então veio a vertigem, o desmaio e eu estava sentada no chão do banheiro tentando vomitar algo que não havia no meu estômago. Foi preciso muita força de vontade pra eu conseguir ficar de pé, me enxaguar e voltar pra maca.

Mamãe penteava meus cabelos, cada vez mais horrorizada com os montes que saíam. Uma enfermeira idosa e gentil cuidava dos meus ferimentos. Comi pão e tomei essas águas vitaminadas sabor limão. Chorei. Finalmente senti medo, pavor, pânico. Mas vamos lá, Gabrela, você precisa ser forte. Logo eu estava a caminho de casa, mais dormindo que acordada. Amigos, cunhada, namorado... Todos vieram me ver ou ligaram. Ainda estou nesse processo de ligações e visitas.

Hoje acordei melhor. A dor já não é tão forte, mas meu braço e meu joelho me dão nojo. Já sou quase o que sou normalmente. Já faço piada do estrago a maior parte do tempo. Mas ainda sinto tontura quando me levanto ou quando apoio o lado esquerdo do rosto no travesseiro. Ainda perco um pouco a noção do tempo ou do espaço por alguns segundos. Mas é segredo. Eu estou bem, serião.

Como resultados, Japa levou cortes que sangraram muito, mas nada mais grave em relação a traumatismos. Minha cunhada voltou a sentir dores na perna que estava em recuperação e está dolorida em outras áreas do corpo. Meu namorado sente algumas dores generalizadas. Eu me estrepei. Amassei a lataria do lado esquerdo e rasguei a do lado direito. Meu carro deu perda total e eu não tinha segurado ele ainda. Uma recompensa pelo couro do tamanduá ronda  cidade. Tudo vai voltando ao normal, na hora certa.

Mas eu estou falando do túmulo. Estou falando de uma cruz na estrada, sinalizando a minha morte em um acidente. Eu estou falando de onde eu devia estar.

Não sei quem chegou até aqui e sabe que sou evangélica. Que eu cresci e fui educada na Igreja Cristã Maranata durante toda minha infância e pré-adolescência e que depois de anos afastada, decidi voltar, há alguns meses. Que aquele vazio que eu sentia e que tanto já foi citado em textos nesse blog, finalmente foi preenchido. O filho pródigo à casa torna. Respeito a fé e a falta de fé de cada um aqui, então peço a todos o direito de reivindicar o fato de eu não ser uma cruz na estrada porque Deus colocou sua mão sobre mim e sobre todos os que estavam naquele carro.

"Laço de morte" é uma expressão muito usada nas igrejas evangélicas para dizer quando estamos correndo sério risco de vida. E havia um laço de morte ali. Não sei se pra mim, se pro meu namorado, pra minha cunhada ou pro meu amigo. Ou se pra todos nós. Mas naquela madrugada, pelo menos um de nós iria virar presunto. Eu, que voltei recentemente à igreja, ainda sinto as dúvidas que minha racionalidade criam. Andei fraquejando na última semana, pensando se tanto esforço valia a pena por algo que só se sabe que existe através da fé. Meu namorado, nascido e criado na igreja evangélica, em período de prova - afastado da Santa Ceia e impedido de tocar nos cultos por ter brigado na rua - e também pensando muitas vezes se tudo isso valia a pena. Minha cunhada, com dúvidas, tentando pesar seus valores. Não posso falar pelo Japa, mas todos nós ali estamos naquela fase da vida onde sacrificar boemia, baladas, sexo, farras, bebedeiras e etc pode parecer um péssimo negócio quando a única coisa que nos impede é uma força superior que só existe se você acreditar.

Era um ótimo momento para morrermos. Se nossa fé for verdadeira, tínhamos sérias chances de perder nosso lugar no céu. Só que igualmente, se nossa fé for verdadeira, Deus ainda não está pronto pra abrir mão de nós. O carro acabou. Mas nós, apesar das feridas, estamos aqui, provas vivas de que a proteção de Deus é maior do que a lei da gravidade. Acredite quem quiser, no que quiser. Eu só sei que senti a mão de Deus me segurando todo esse tempo e só tenho a agradecer a Ele por mais uma chance. Se alguém acha que passar pelo que eu passei ia balançar minha crença, errou. Só fortaleceu. As dúvidas se foram. Mais do que nunca, eu quero estar na presença de Deus, eu quero seguir os princípios cristãos. Vivi anos na liberdade do mundo e nunca fui completamente feliz. Vivi meses na presença de Deus e mesmo imobilizada e com dores, mesmo tendo perdido meu carro, eu me sentia imensamente grata e feliz. Porque podem me tirar os anéis, mas meus dedos estão todos aqui.

Eu sei, pra grande maioria é um choque esse testemunho de fé meu. Pra alguns, um absurdo. A maioria dos meus amigos desprezam esse meu retorno ao cristianismo. Vindo de mim, soa quase como piada. Mas Deus não aje conforme nosso conhecimento, não cabe a mim explicar ou interpretar suas ações. Eu me resigno, agradeço, amo. Quem veio até aqui pra saber o que aconteceu comigo, pode parar alguns parágrafos acima. Mas quem veio até aqui tentando entender como eu estou lidando com um dos momentos mais difíceis da minha vida, fica a resposta: Eu senti o amor de Deus me protegendo. Eu sei que tem aqueles que dizem "se Deus te amasse, ele não deixaria o acidente acontecer ou vocês terem se machucado". E sei que aqueles que terão explicações científicas pra justificar porque não estamos mortos.

Mas eu falo de um túmulo. Eu falo de uma cruz na estrada. Eu falo de uma morte que deveria ter me atingido e foi aparada pela mão d'Aquele que é maior até mesmo que ela. Eu falo com a consciência de quem sabe que não deveria estar aqui pela lógica. Eu falo com a consciência de quem sabe que só está aqui por amor. E por um amor que ninguém mais pode me dar além d'Ele.

A quem tem fé, mantenha. Se quiser e puder, ore e agradeça esse livramento, ore e agradeça por estar na presença de Deus, ore e agradeça por continuar resistindo. A quem não tem, reveja seus conceitos. E se isso não vier a calhar, obrigada mesmo assim pela preocupação ou pelo menos, pela curiosidade. Eu estou viva, eu estou bem e as cicatrizes são só marcas que mostram que mesmo sendo vulneravelmente humana, uma serva do Senhor possui um escudo que nem a morte pode tocar.

Fiquem em paz.



6 comentários:

  1. reveja seus conceitos? respeite as minhas crenças q respeitarei as suas... ora essa... btw, adorei sua foto imobilizada...

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  2. Se eu pego esse Tamanduá - minha filha. Eu rasgo a barriga dele com a boca e lanço as tripas em Jannaham.

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  3. Ai eu acredito em Deus... ai eu não acredito.... foda-se tudo isso!
    O que vale aqui é saber que mesmo avariados, vc e seus amigos estão vivos!!!

    Não estou pronto pra te perder ainda.
    Depois te ligo.

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  4. Biela, que bom que não houve nada pior. Que bom que tudo está voltando pro eixo. Que bom que voce, apesar dos pesares, permanece feliz.
    Um beijão!!

    Ps: tadinho do tamanduá!! ;(

    Amanda Madureira

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  5. Olá,

    MeoDels, Bagaço, só tu pra sair em foto quando rola acidente te envolvendo. Sei não, viu. Tome cuidado, guria, eu ainda quero te conhecer pessoalmente pra gente relembrar - reclamando ou falando bem, depende do humor do momento - os saudosos tempos de corre-corre nético. :) Tá certo?

    Bonanças.

    Atenciosamente,
    Leishmaniose

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