sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

Sobre Felinos

Ele era um gato daqueles comuns, por isso, não era do tipo que as pessoas olhavam com atenção. Era só um gato de rua acinzentado como a própria rua em que morava. Mas era esperto, como os gatos de rua costumam ser. Havia nele algo vivo, algo que gatos caseiros não costumam ter. É claro que todos os gatos são naturalmente espertos, mas os gatos como ele... Ele era um gato que percebeu, quando filhote sozinho e assustado, que ficar miando não ia resolver o problema. Que percebeu que a mesma mão que dá comida e acaricia pode ser aquela que te pega pelo pescoço e te joga contra o muro. Que percebeu que não há compaixão no mundo pela qual valha a pena baixar a guarda. Gatos como ele eram mais que espertos. Eram sobreviventes.

A vida de um gato pode ser bem saborosa, principalmente pela sua essencial falta de obrigação. Encontre comida e água quando precisar e qualquer fio dental pendurado em um lixo pode ser uma diversão de horas. Mas acontece que esse gato era esperto demais. Ele um belo dia se entediou. Depois de finalmente conseguir invadir um apartamento no primeiro andar de um prédio - diversão essa que durou semanas enquanto ele tentava de todas as formas achar o jeito certo de escalar até o eu objetivo - as coisas ficaram meio paradas. Ele precisava de mais.

Atravessava a rua, distraído com seus próprios projetos felinos, foi atropelado e morreu. E então ele se levantou, lambeu a pata esquerda e pulou sobre um muro onde picharam "amor é o caralho". Com sua sabedoria de gato, ele sabia que tinha morrido assim como sabia que um cheiro de peixe vinha de algum lugar ali perto. E então ele foi atrás do peixe e depois, resolveu testar seu novo hobby.

No primeiro dia, ele entrou numa briga com um cachorro gigante. Há muito tempo, ele morria de vontade de arranhar a cara do dito cujo, mas isso custaria sua vida. Custou, mas depois de machucar bastante o adversário e morrer, levantou-se, arrepiou-se inteiro na direção do cão horrorizado e saiu correndo passando pelas grades estreitas do portão. Em seguida, entrou no supermercado da vizinhança a toda velocidade e saiu quicando entre as prateleiras derrubando o máximo de produtos possíveis. A dona do supermercado já havia o enxotado com água várias vezes e ele sabia que a ofenderia profundamente se bagunçasse seu amado comércio. Foi acertado por uma paulada e morreu na hora, sendo jogado no lixo. Acordou satisfeito pois achou comida ali e achou que era o suficiente por um dia. Foi para seu canto no telhado acima do hospital e dormiu.

Acordou no outro dia determinado a pegar o maior número de pombos que havia na alta torre da igreja. Aqueles pombos eram burros o suficiente para o entreter por horas, mas em algum momento ele despencaria. E despencou. A torre era alta demais até mesmo para seus instintos felinos e lá se foi mais uma vida. Demorou a acordar, mas era cansaço por correr atrás dos pombos. Então se escondeu e esperou passar um senhor que certa vez arrebentara sua perna com uma bengala só porque ele tentou comer seu canário de estimação. Pulou na cara do senhor e afiou suas unhas no rosto sulcado do homem. Foi retirado de cima pela união dos passantes - que também ganharam sua quota de arranhões - e teve seu pescoço quebrado.

Estralando os ossos do pescoço, saiu bamboleando depois de se certificar que as pessoas se dispersaram e a ambulância foi embora. Decidiu que naquela noite seria legal dormir perigosamente e então enfiou-se num aconchegante cano de descarga de caminhão. Há muito tempo sonhava em dormir naquele cano, mas desde que um companheiro de pobreza seu morrera intoxicado ali, nunca quis arriscar. E então dormiu e gostou, morrendo só na manhã seguinte e acordando muito bem disposto.

Por fim, traçou um novo objetivo. O primeiro andar era para os fracos. Queria o décimo, agora. Estudou a estrutura que o levou até o primeiro andar - agora era fácil - e começou a galgar os degraus que o levariam a ser o senhor de todos os gatos. Suas manobras agora eram arriscadas e imprudentes, mas contava com os reflexos de um gato confiante. Alcançou seu objetivo no fim do dia e como presente dos deuses, havia um jantar servido na mesa e a janela estava aberta. Comeu até quase explodir e então, foi enxotado por uma dona de casa indignada e pasma. Pulou pela janela satisfeito e pensando que seria bom uma queda-livre pra chegar lá embaixo mais rápido.

Infelizmente era a última de suas sete vidas e ele morreu pra valer dessa vez. Mesmo sendo um espécime genial de felino, gatos ainda não sabem contar.

Um comentário:

  1. Muito bem.
    O gato viveu cada dia como se fosse o último. kkk'

    Mas o melhor mesmo foram essas marcações no final!

    ResponderExcluir